O filme dinamarquês A Caça (Jagen), lançado em 2012, marca o retorno do diretor/roteirista Thomas Vinterberg para um tema o qual ele já havia abordado, em seu início de carreira, ao dirigir Festa de Família, de 1998. Referimo-nos ao tema da pedofilia.
Mas, se em Festa de Família havia uma espécie de humor negro somado a um ritmo intenso, em A Caça existe uma “áurea” bem mais angustiante. Pois, cena após cena existe um suspense crescente, como se algo de muito mau estivesse prestes a acontecer ao personagem central da trama a qualquer momento.
Na obra, conhecemos o professor Lucas, interpretado por Mads Mikkelsen. Ele trabalha em um jardim de infância e mesmo estando passando por uma fase difícil, após o divórcio, leva uma vida boa. As coisas mudam quando uma aluna sua chamada Klara, interpretada pela Annika Wedderkopp, após uma “briga” com o professor fica chateada resolvendo contar uma mentira a respeito dele para a diretora. Ela diz, sem saber o grau de problema que está arranjando, que Lucas lhe mostrou seu pênis. Daí em diante, vemos a vida do professor se tornando um inferno.

Ética e justiça são dois fatores que andam juntos, por isso, ao vermos a injustiça que se materializa sobre esse personagem podemos pensar a falta de ética de toda uma comunidade que se abate sobre esse indivíduo por causa de um rumor.
Ao refletirmos sobre esse filme devemos lembrar também o outro lado. Até que ponto conseguiríamos nos manter imparciais/justos quando uma pessoa de nossa máxima confiança, uma pessoa na qual confiamos nossos filhos, supostamente abusou sexualmente de uma criança. Criando ainda a suspeita de que se Lucas abusou de uma, ele pode ter abusado de quantas mais.
O nosso modelo de justiça nos aponta que uma pessoa só pode ser considerada culpada quando existe uma certeza absoluta de sua culpa – a pessoa é inocente até que se prove o contrário – e vemos como isso não acontece na prática, apenas na teoria.
Lucas pode ser visto como uma espécie de metáfora para todos os inocentes que sofrem por ditos crimes que não praticaram. Até mesmo a “isenção cientifica”, a precisão do especialista, deixam em aberto se Lucas abusou ou não da garota. Mostrando as falhas em nosso conhecimento.
É importante frisar o quão comum é tomarmos decisões sem entendermos de maneira abundante o que estamos fazendo. Terminamos por julgar, cheios com nossos preconceitos, uma grande variedade de informações e pessoas.
É importante frisar o quão comum é tomarmos decisões sem entendermos de maneira abundante o que estamos fazendo. Terminamos por julgar, cheios com nossos preconceitos, uma grande variedade de informações e pessoas.
Além disso, o julgamento deveria ser do âmbito do poder judiciário. Na obra, vemos como quando se vive em comunidade estamos sendo julgados todo o tempo, desde as pequenas coisas até as grandes questões.
Mais do que um pensamento dual (dialético), o filme abrande a questão da não dualidade do mundo, da ambivalência. O filme não vai trabalhar com bem e mal, belo e feio etc. Ele parece nos mostrar como a existência está posicionada em uma “zona cinza” em que a utopia (aquilo que não possui espaço no real) da dualidade é posta em duvida por um jogo de heterotopias.
Exatamente o espaço do observador onisciente, ou seja, o espaço do expectador, não existe entre os personagens da obra.
Klara não é uma vilã, ela não é ontologicamente má, ela é ignorante. Exatamente como todos nós, em maior ou menor grau, dependendo da questão. E, a menina se mostra extremamente confusa com as coisas em andamento. No fim, ela já não consegue nem mais afirmar se o professor cometeu algum abuso ou não. Ela diz que não, os adultos dizem sim. E agora? Os adultos não eram a fonte do saber confiável? Não são eles que realmente sabem das coisas?
O problema de Lucas e Klara, também vale ser dito, não é um problema de âmbito multicultural. Ambos participam, não só da mesma sociedade, como também da mesma cultura.
Em que acompanhamos a produção de estigma e a expulsão dele de uma série de ritos, os quais ele participava e agora não mais pode fazer parte. Lucas está proibido de comprar comida no supermercado, não pode mais trabalhar, não mais pode se unir com seus antigos amigos para beber uma cerveja e jogar, não mais pode se aproximar das crianças, é mal visto ao entrar na igreja etc. Esse é o preço de ser o ente desviante…
Fala-se da necessidade de uma ética plural e aberta para diálogo, uma ética compartilhada, contudo até que ponto é viável conseguir nos abrir para o diálogo com esse agente social considerado infame ou louco? Até que ponto podemos acreditar que existe chance de diálogo com alguém tão diametralmente diferente de nós que não conseguimos, em mínima instância, entender sua lógica mental? A margem da razão se torna a desrazão. E, qualquer tentativa de formação de uma civilização termina por criar as fronteiras entre ela (civilização) e os outros (os bárbaros). Nesse ponto a lógica dual funciona bem.
Ética envolve a questão dos direitos, mas Lucas é alguém que está perdendo seus direitos, está passando a ser considerado alguém possível de ser sacrificado pelo bem comum da sociedade. Como mostra a última cena em que alguém tenta dar um tiro com um rifle nele. Os agentes da justiça, em tese imparciais, iriam investigar a fundo sua morte? Ou, no fundo, dentro dessa pequena sociedade, muita gente ficaria aliviada com a sua morte mesmo em circunstâncias estranhas?
A visão de justiça para muitos, não visa à imparcialidade. Porém, sim o ódio direcionado aos grupos que se acha justo odiar.
Não existem direitos irrenunciáveis, todos os direitos são construções históricas e sociais, a época em que o jusnaturalismo valia já passou há muito tempo. Em última instância, dependendo do cenário social, todos nós podemos nos tornar matáveis. Pensar uma lógica de justiça universal em que existiria um mínimo múltiplo comum em todos os humanos é bonito, é Rousseauniano, mas o empirismo derruba essa ilusão.
O filme A Caça perturba porque ele é carregado de verossimilhança. No fim do filme a situação não é esclarecida. O personagem principal não volta a viver feliz e contente dentro da sociedade. O estigma social colou nele e não irá sair.
Em suma, é muito fácil falar: “Eu não julgo. Eu sou ético. Eu nunca faria isso”. Na prática, a situação é bem diferente. Por processos de autoenganos gostamos de nos achar melhor do que realmente somos. Achamos que entendemos as coisas, mesmo quando não entendemos, cobrimos nossas falhas e aumentamos nossas glórias. Achamo-nos muito éticos mesmo quando somos monstros.
Não devemos desistir da ética. Contudo, apontar suas barreiras (para além de uma visão simplista) é questão importante se realmente desejamos aprofundar a questão.
E, no fim, o fundamental talvez seja perguntar: É possível uma ética mesmo em meio à ignorância?
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